segunda-feira, 6 de julho de 2009

Laureano Barros: O homem e a sua biblioteca

---
Deixo-vos este pequeno excerto da história de uma vida muito singular, pela mão de Paulo Moura para o PÚBLICO:
«Foi quando foi viver para o Porto, para frequentar o liceu, que o jovem Laureano Barros começou a comprar livros. Frequentava os alfarrabistas e iniciou uma colecção, tal como fazia com os paliteiros, bengalas, relógios, louças, antiguidades ou alfaias agrícolas. Mas ao contrário de toda a traquitana que sempre gostou de trazer para casa, aos livros ergueu uma fidelidade. Não os vendia, não desistia nem se esquecia deles. Começou a acumulá-los na moradia que o pai lhe comprou para se instalar na cidade, na Foz, continuou a ampliar a colecção enquanto viveu nessa casa com a primeira mulher, Leonor, e depois quando se divorciou dela e das seguintes. De cada vez que se separava da mulher com quem vivia (e foram mais mulheres do que os três casamentos), deixava-lhe tudo: a casa, os móveis, as antiguidades. Mas levava consigo a biblioteca. Eram livros de Matemática, de Filosofia, de Botânica, mas acima de tudo de Literatura Portuguesa, e, cada vez mais, volumes curiosos e raros, obras pouco conhecidas, primeiras edições. Por alguns autores tornou-se obcecado e comprava tudo. Depois estendeu a obsessão a todos os escritores. Comprava e lia, várias vezes, os livros de Camilo, Eça, Pessoa, Torga. Sempre teve insónias, e passava-as a ler. Dono de uma memória prodigiosa, sabia páginas e páginas de cor. Perdia horas a arrumar os livros, a manuseá-los, a acariciá-los.
Para ele, eram um salvo-conduto contra a efemeridade de tudo o resto. E também contra a desilusão, como se nada, além dos livros, estivesse à altura dos padrões de excelência que estabeleceu. Do grau de pureza que cedo definiu para a sua vida.
(...) mas à medida que se aproximava do fim, e ia perdendo o interesse por tudo excepto pelos livros, apercebia-se também de que os filhos não queriam a biblioteca. Pensou em várias soluções - doar as obras a uma instituição, criar uma fundação (ideia do filho Carlos). Mas nenhuma lhe agradou. Por fim, deixou de pensar no assunto. Mergulhou numa estranha apatia, uma inconsciência meticulosa e desesperada, que apenas aos seus "meninos" era visível. E os fazia sofrer.

Como pôde aquele homem que tudo calculava e tudo prevenia ter cometido um erro tão grosseiro? No seu afã de tudo medir pela beleza dos livros, de sublimar neles os seus dias e o seu futuro, nunca lhe passou pela cabeça que a biblioteca pudesse não ser eterna.
Mas não deixou, mesmo sabendo (e decerto aceitando) que em breve tudo aquilo seria vendido em leilão, de folhear, tratar e acariciar os seus livros, com a leveza confiante com que uma criança diz adeus a quem ama.»

Sem comentários: