sábado, 19 de novembro de 2011

A Curva do Rio


“O mundo é o que é; os homens que não são nada, que se permitem tornar-se nada, não têm lugar nele”
É com esta frase que V. S. Naipaul, prémio Nobel da Literatura em 2001, inicia A Curva do Rio, cuja história decorre num país africano sem nome, numa cidade interior, na curva de um rio.
Salim, um jovem filho de indianos, compra uma loja numa cidade do interior desse país africano e pensa que assim terá um bom futuro. Mas num país pós-colonial, com enormes atrasos e sem sociedades desenvolvidas no sentido europeu, o conflito é uma realidade permanente.
A cada linha vemos as relações de dependência entre as pessoas, a escravatura, a pobreza, corrupção. Ao lado disto, temos um poder político omnipresente, primeiramente como esperança, depois como a única realidade dominante. E que a mim fez lembrar Orwell no seu assustador 1984.
Salim não tem grandes relações sociais. Num país africano, ele é indiano e as suas relações mais próximas são com indianos. De entre essas relações destacam-se um casal também comerciante que foi para a cidade, mas que vive de medo. Um casal de aparência social com o qual almoça uma vez por semana.
Além deste casal há Metty, um escravo da sua família que é impingido para ir viver com ele nessa cidade do interior. É muito interessante ver a relação entre ambos ou, indo mais além, seguir a ligação existente entre esses escravos e os seus senhorios. Em muitas situações é o escravo que acaba por ser o senhor. A relação entre Salim e Metty oscila entre a quase cumplicidade e o parasitismo puro.
Há ainda um amigo de juventude que graças aos estudos consegue ser próximo do presidente. É colocado na Cidade Nova, reencontra Salim, e a partir daqui seguem-se várias peripécias romanescas e as soirées (lembrou-me Os Maias) com pessoas relevantes socialmente. Raymond escreve discursos do Grande Chefe, é seu conselheiro privilegiado. Mas num país em ebulição, rapidamente cai em desgraça.
Em termos gerais, a história decorre num país pós-colonial, inicialmente cheio de esperança no progresso e no futuro. Mas rapidamente há um desmoronamento social, e é dramático ver o que acontece a todas as personagens. Da esperança passam ao descrédito. A violência, a corrupção, as guerras, rapidamente transformam em tragédia qualquer sonho, por mais básico que seja. A esperança depositada num novo poder político, com traços de iluminismo, rapidamente dá lugar a mais um regime totalitário. Os amanhãs que cantam vestidos de violência, tragédia, cegueira social. Tudo sempre com a melhor das intenções.
Aquilo que associamos normalmente a África aparece nesta obra em todo o seu esplendor. A Curva do Rio é um retrato dramático deste continente mergulhado numa permanente instabilidade e sem perspectivas de uma vida normal. 
(Declaração de interesses: sou manifestamente eurocêntrico).
Pelo tipo de personagens e pelos países que vão sendo citados, percebemos que este país sem nome fica próximo do Corno de África, algures entre a Tanzânia e a Somália.


Fora do âmbito da obra, o que me fez mais comichão no céu-da-boca foi o facto de já estar impresso em versão acordo ortográfico. Se esta alteração passa despercebida em quase todo o texto, há no entanto palavras que chocam. Destaco apenas uma palavra que surge inúmeras vezes e que é intragável: receção (em vez de recepção). Ler isto, e tentar articular de viva voz, é uma aberração.

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