terça-feira, 28 de outubro de 2008

Ensaio sobre a Cegueira

“Ensaio sobre a Cegueira”, essa obra maior de José Saramago cujo filme estreia em breve, é um romance desconcertante, inquietante, violento, duro, de uma dureza crua. Com múltiplas leituras, todas elas chocantes e dramáticas.

O romance, em termos gerais, trata de uma cegueira branca que começa a alastrar vinda ninguém sabe de onde. E a vida mergulhada nessa cegueira leitosa. Uma trágica vida feita de caos. Sem olhos, não há ordem social que resista.

Apenas uma mulher escapa à cegueira. E, embora parecendo algo bom, é doloroso, pois só ela consegue ver até que ponto o Homem pode chegar. E vendo, tem de calar, não pode partilhar aquilo que os seus olhos levam ao seu entendimento. Só ela absorve completamente a tragédia em que o mundo – o seu, o dos outros, o de todos – está mergulhado.

Sem olhos, cada um é sem as balizas dos olhares dos outros. Degrada-se, cola-se à marginalidade, torna-se anti-homem. Ao mesmo tempo, o Homem obriga-se a ser transparente, pois fica despido do fato que a sociedade lhe impõe. Não consegue vislumbrar como vai esconder-se.

Ao nível da individualidade, as fragilidades são exacerbadas, pois cada um só é de facto visto pelo seu interior. Não precisa vestir uma carapaça que mostra perante os outros. E esta nudez do exterior conduz a dois comportamentos contrários: por um lado, a bondade, o melhor de cada um; por outro, o mais vil de cada homem vem à tona. O vandalismo social torna-se a regra.

Paralelamente a este olhar interior, podemos sentir a capacidade de viver sem julgar o outro. Porque cada um tem a sua própria cegueira. Ou, em versão proverbial, todos têm telhados de vidro.

Diz-se que os olhos são o espelho da alma. Mas… e se não houver olhos – para ver e para ser visto? Como é que cada um se relaciona com o outro? Como olha e como é olhado?

Sem estas janelas da alma disponíveis, o Homem condena-se à sua condição animal, ou menos que isso. Cada um só pode ser reconhecido pelo ruído das suas almas, pelos ecos que produz sob a forma de voz (“os cegos não precisam de nome, eu sou esta voz que tenho, o resto não é importante”). Como alguém diz a certa altura, “dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”. E o que somos? Em que nos transformámos?

Toda a vivência no manicómio, enquanto dura a quarentena, é uma lição, uma montra e uma amostra daquilo que o ser humano é capaz de fazer, para o bem e para o mal, até onde vai a degradação. Este manicómio é uma tela sobre a qual saltam os mais diversos aspectos da vida, desde o maior altruísmo, até ao máximo de egoísmo e irresponsabilidade. É chocante ler algumas passagens. E, ao mesmo tempo, põe-nos a olhar para o nosso mundo. Em que estádio estamos – quer individualmente, quer enquanto sociedade global? E para onde vamos?


“Ensaio sobre a Cegueira”, lido agora pela segunda vez, abalou-me da mesma forma que o fez há dez anos. Porque é duro, porque nos transporta para uma realidade que abala todos os alicerces sobre os quais estamos assentes. E questiona, linha a linha, página após página, como vivemos, quais os valores que nos servem de referência. E o que define o Homem enquanto tal.


"Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem."

sábado, 11 de outubro de 2008

“Que outros se gabem dos livros que lhes foi dado escrever; eu gabo-me daqueles que me foi dado ler.”

Jorge Luís Borges (1899-1986)

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

José Saramago

Há 10 anos José Saramago era o escolhido para o Nobel da literatura.
Há 11 anos li "Ensaio sobre a Cegueira".
E fui maravilhosamente surpreendido!
Entretanto, já li vários outros romances de Saramago, mas este "Ensaio sobre a Cegueira" permanece, como uma obra maior, no topo das minhas escolhas.
Sendo uma excelente recordação, e estando o filme para breve, voltarei a embrenhar-me nele nos próximos dias.
Já o tirei da prateleira...

Alma e os Mistérios da Vida

“Na noite em que nasceste, madrugada adentro, coisas estranhas aconteceram”.
Assim começa a história de Alma, a criança de cabelos cor de fogo.
Rejeitada por todos na aldeia desde o primeiro momento, as pessoas olham com estranheza para aquele pequeno ser e para todos os acontecimentos sem explicação em que se vê envolvido e, por não conhecerem ou conseguirem explicá-los, reagem naturalmente com medo e maldade. Apenas Ti Efigénia sabe o quanto ela é especial, talvez por também ela viver isolada do resto das pessoas por ser considerada bruxa.
Anos mais tarde, a mãe de Alma numa tentativa de despachar aquilo que considera um caso perdido, envia-a para Lisboa como criada de servir. No Palacete da Lapa, Alma é acolhida por Dona Sofia que lhe dedica todo o seu amor, cuidando dela como da filha que nunca teve e pela primeira vez Alma sente-se desejada.
A história de Alma avança, as várias personagens que com ela interagem vão subindo ao palco da narrativa, são-nos relatados pequenos episódios da história de cada uma, com uma sensibilidade incrível, bem vincada em cada palavra ou imagem que nos toma de assalto. O eco dessas palavras agarra-nos a cada página e faz-nos deslizar através do relato, caindo suavemente nele.
Alma vai estudar para Coimbra onde conhece os prazeres da vida académica e …Ricardo.

No entanto, Dona Sofia morre inesperadamente e Alma regressa a Lisboa. Fadada para a desgraça, mais uma vez só, Alma cai num silêncio urdido de tristeza, num torpor que lhe dilacera as entranhas.
Para superar o desgosto muda-se para Paris, regressando pouco depois à capital onde reencontra Ricardo. Acometidos por uma atracção descontrolada e por uma fome de estar um com o outro, roubam à vida de cada um algumas horas para estarem juntos. Mas um laivo de realidade assoma na vida de Alma e esta foge de Ricardo e de si mesma para sempre e uma vez mais fica só, cumprindo o seu destino.

Não tinha ouvido falar do livro e nem conhecia a escrita de Luísa Castel-Branco, e foi com alguma relutância que tomei a decisão de o ler. Fiquei completamente rendida logo nas primeiras páginas, e mais uma vez me convenço “ (...) de que aquele livro tinha estado ali à minha espera (...) ” [in A Sombra do Vento]