quarta-feira, 22 de setembro de 2010

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Capotira - um autor sugere

Através do nosso mail, Roberto C. Puccinelli Jr. enviou-nos o seu site com o romance Capotira, a lançar brevemente em livro.
Trata-se de um romance histórico, que aborda a ida da família real portuguesa para o Brasil, em 1808.
Fica a sugestão e o agradecimento.

Beatriz das mil palavras

Beatriz tinha um espírito livre e cheio de palavras. Jovem, de olhar inquieto e vibrante, tinha um passo apressado e saltitante. Era assim a sua vida, alegre, cheia de futuro e horizontes. Trabalhava há quase um ano na biblioteca da sua pequena localidade. Não quis continuar a estudar, queria misturar-se com as palavras, perder-se dentro dos livros, viver outros mundos, viajar em sentimentos impressos.
Foi bem aceite e acarinhada na biblioteca destes livros ainda não esquecidos. A sua alegria trouxe muitos leitores à biblioteca, sobretudo os jovens das escolas próximas, muitos dos quais conhecia e eram seus amigos e cúmplices de traquinices.
Em poucos meses descobriu – melhor, inventou! – a melhor forma de ter novos amigos dos livros. Trocava páginas entre os vários livros, ao acaso, misturando vidas, conteúdos, imagens, palavras. Qualquer leitor agarrava num livro de poesia e acabava a ler a teoria evolucionista de Darwin, ou tirava à prateleira um livro de arquitectura e descobria, ao abri-lo, que estava a ler as tiras do Tio Patinhas… A imprevisibilidade com que misturava livros era semelhante à magia que se esconde em muitos livros de Gabriel Garcia Marquez. A imprevisibilidade mágica das palavras.
Ao fim do dia, Beatriz saía da biblioteca, mas só os mais incautos podiam imaginar que se desligava das histórias. Na realidade, agarrava a sua bicicleta e ia para o pequeno porto, onde diariamente encontrava os pescadores, os marinheiros, os estivadores, homens com a pele marcada pelo trabalho e pela vida, e com a cabeça cheia de histórias, de aventuras, de episódios que a apaixonavam permanentemente. Beatriz era uma marinheira das palavras em terra, mas cujo espírito navegava em alto mar.
Nunca fora mal recebida nos bares marinheiros, onde ouvia todas as histórias com o mesmo interesse e com o mesmo à-vontade que se fosse um daqueles homens de meia-idade. Para aqueles homens Beatriz era como uma filha, uma mascote que tinham ali quase todos os dias, da qual gostavam genuinamente e por quem uma ou outra vez se sentiam apaixonados. O seu ar juvenil, o seu sorriso resplandecente, a sua sensualidade, a sua leveza, o seu decote, o olhar inquieto, a inteligência curiosa…
Naqueles fins de tarde, Beatriz ouvia histórias de pescarias impossíveis, de tempestades cruzadas, de vidas noutros portos, de desconhecidos quase seus amigos, de coragens, de cobardias, de aventuras, de vidas, de mortes, de dias e de noites, de alegrias e tristezas, sorrisos e lágrimas, e até de um americano que apanhava sempre vários táxis quando ia de um lado para outro.
O Jack apanhava um táxi, e poucos quarteirões à frente pedia para sair. Aguardava alguns minutos e voltava a apanhar um outro táxi que o levaria ao seu destino… ou não. Tinha essa paranóia: não queria que ninguém soubesse de onde vinha, nem para onde ia, por isso apanhava vários táxis numa espécie de estafeta urbana. Já tinha apanhado 10 táxis para ir de um lado a outro da cidade!
Ouviu também a história de um português que era também pescador em França. Nunca acreditara na sorte, até porque aos muitos lugares onde tinha viajado nunca a tinha visto. Por isso, misturava os números do euromilhões e do totoloto para multiplicar as suas possibilidades de ficar rico. Mas, para sua infelicidade, até aos seus 74 anos nunca tinha conseguido enganar a sorte ou baralhar as máquinas que escolhiam os números semanalmente.
Estas e muitas outras histórias maravilhavam Beatriz e levavam-na para outra realidade. Vivia na terra, mas não se coibia de viajar frequentemente ao mundo dos sonhos. Ao início da noite, quando chegava a casa, ia visitar os locais das histórias que tinha ouvido nesse dia, e preparava-se para no dia seguinte voltar ao seu recanto cheio de vidas impressas.
Desde que trabalhava na biblioteca, tinha aumentado o número de leitores e visitantes. Vinham até de localidades vizinhas para espreitar a biblioteca dos livros improváveis. Mas nunca ninguém percebeu que os livros estavam trocados, que as páginas tinham tamanhos diferentes, que o papel era de outra qualidade. A magia daquela biblioteca enfeitiçava quem lá entrava, e ninguém imaginava que a bruxa estava escondida por detrás do olhar doce e do sorriso sedutor da menina Beatriz.



(Para Fábrica de Letras, desafio de Setembro)