terça-feira, 19 de abril de 2011

ao preço da chuva


A expressão não podia ser mais apropriada à situação...

Um final de tarde duplamente especial.
Em primeiro lugar, ver o Chiado banhado de cinzento e com o sol a tentar romper as nuvens espessas, sem o conseguir... Uma imagem que não consigo, infelizmente, partilhar aqui utilizando palavras, porque estas não conseguem traduzir o misto de sentimentos que envolvem a mesma. Ficou condignamente registada no meu telemóvel. Assim que possível partilho aqui.
Em segundo, no minuto seguinte a ter tirado a foto, estala uma trovoada seguida de uma chuva intensa que me obriga a procurar abrigo rapidamente.



E foi assim que entrei na Livraria Aillaud & Lellos, Lda, na rua do Carmo. Se tinha de esperar que a chuva mingua-se, então havia de fazê-lo com prazer. Entrar nesta pequena loja foi como entrar num mundo literário completamente diferente. Um espaço agradável, para quem gosta de passar os olhos por prateleiras na esperança de descobrir um novo autor e a sua obra ou descobrir aquela obra que tanto procura. Impossível ficar indiferente às promoções e não perder a cabeça com os preços!
Se tiverem oportunidade passem por lá e, apenas por mais alguns passos, têm a Livraria Portugal. Tenho a certeza que os verdadeiros amantes de livros vão perder-se nestes dois espaços.


Foi neste espaço que descobri (a dedilhar prateleiras) a poesia de Orlando Neves. A fúria da sua poesia é de ficar sem fôlego. A palavra impregnada de sentimento, muitas vezes contraditórios, leva-nos e ler e a querer reler vezes sem fim cada uma das páginas que compõem o livro. Deixo-vos aqui apenas um trecho da sua obra:

Só os Lábios Respiram

Só os lábios respiram. Simples gesto vivo,
exílio do som onde se oculta o pavor da
palavra, pátria salgada cerrada no vazio
da casa de velhos deuses ávidos de preces.
Na garra da águia se fecha e rompe a boca,
templo e entranha, prodígio e anel
do eco, sinal esparso do caído concerto
da vida. Por estes soberbos montes, estas
rasas colinas, estas águas circulantes,
vai o grito da cegueira, o delírio lasso
na manhã, a saciada loucura do escuro
nome nocturno. Como um fragor dos céus,
caminha o canto agudo das árduas cigarras
perseguindo a funesta morte. Por esta
paisagem parda, que lábios me guardam
do próximo desastre, a mudança em ave,
cio ou sal, erva ou peixe, cicatriz ou
mito, veia ou água? Que lábios respiram
na coisa mortal que serei após o termo
da eterna efemeridade deste meu corpo,
coma de luz, deste desejo, rijo resíduo,
deste pensamento, disfarce ou máscara,
deste rapto do tempo, deste coração que começa?

in "Lamentação em Cáucaso"

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